Crônica - FADA LOURA

Era manhãzinha e vi pela janela o arrebol tingindo o céu de cor afogueada, dando a tônica da magia da natureza naquele dia distante.  O espetáculo proporcionado pelo Sol majestoso extasiou meus olhos; senti-me inebriado pela brisa amena se contrapondo ao fulgor da luz reinante, que instantes após, faria cair das folhas as gotas de orvalho brotadas à noite.

Ouvi um barulhinho de passos saindo do quarto e, ao voltar-me, meus olhos fitaram os de Sophia, que veio correndo e se jogou em meus braços. Deitando a cabeça em meu peito e me dando um abraço tão apertado sua chupeta chegou a me causar pequena dor, de imediato esquecida em função daquele perfume infantil que impregnava gostosamente minhas narinas. Afaguei seus cabelos encaracolados, louros de um brilho ainda mais fulgurante que o proporcionado pelo Sol, lá fora.

Saímos abraçados para o quintal e, como num passe de mágica, a luz do dia foi ficando mais intensa, tornando aquela manhã, única.

Enquanto acariciava e beijava a fronte da linda criatura em meus braços percebi o que provocara tamanha alteração: o astrorrei, na verdade, havia sugado a cor daqueles cabelos louros para se revigorar de energia e esplendor. Sua Majestade se alimentava do fulgor dourado daqueles fios esvoaçando sob a ação do vento, que era seu cúmplice naquele furto. Percebi, claramente que ele a invejava, pois com toda sua realeza e milhões de anos de existência governando o firmamento, pairando sua luz sobre seus súditos terrestres, estava agora a reverenciar a beleza daquela menina, mais fulgurante que ele.

Sim! O Rei perdera a majestade para a pequena Sophia, a minha Fada Loura.

Quanto ao céu, também muito malandro e gatuno, havia fitado os olhos de Sophia e copiado o brilho e o tom azulado daquelas pupilas e tornou-se mais charmoso, deixando a natureza mais vistosa.

Sophia, graciosa e pueril como toda fada, nem percebia o que estava acontecendo e limitava-se a encher de magia tudo a seu redor. Usando seu sorriso como vara de condão, comum a outras fadas.

Assim passamos aquele dia em perfeita cumplicidade.

Mas era necessária a despedida.

Não sabia quando a veria de novo. Então fizemos um pacto.

Ficou combinado que todos os dias ela emprestaria aos dois invejosos o amarelo de seus cabelos e o azul de seus olhos, e onde eu estivesse poderia vê-la, durante o dia, através do Sol e do céu e, à noite, encontraria minha Fada Loura em meus sonhos. Mesmo distante poderia senti-la junto a mim vinte e quatro horas por dia.

Hoje, fisicamente longe dela, ainda a sinto em meus braços, mesmo quando o Sol já se deita e as nuvens mudam de tom, e, quando o sono me vence, passo a sonhar com ela, a minha Fadinha, sabendo que, ao acordar, a encontrarei no dourado e no azul de toda manhã.

 

Crônica - JANELA DO TEMPO                                                                      

 Os escombros da velha casa escondem tesouros do meu passado. Foi lá que morou por décadas a minha tia mais velha e, também, onde a família se reunia. Impossível esquecer tantos aniversários, casamentos e a tradicional passagem de ano, quando todos se esforçavam para comparecer, mesmo os moradores de cidades distantes.

Viajo no tempo e consigo ver o rosto de cada um dos meus tios e primos, tal como eram em cada época. Alguns já não estão mais conosco, e destes a saudade é ainda maior, e fico a imaginar como seriam hoje as suas aparências.

Olho para os tijolos, telhas, pedaços de madeiras e ferros esparramados no terreno vazio. Estão todos impregnados com marcas indeléveis, histórias que o tempo não apaga. Jamais irá apagar também as minhas lembranças do imenso quintal, foram quatro gerações que puderam desfrutar daquele espaço com sua variedade de árvores frutíferas, cada qual com um dono.

A pitangueira, talvez a menor de todas as espécies do local era minha, e eu sequer alcançava seu topo, pedia ajuda pra colher os tantos frutos que ela produzia. Quantas vezes, sentado sob seus galhos e recostado no seu tronco, ficava imaginando como eu seria quando adulto. Impensável tentar computar o montante de horas consumidas em conversas minhas com aquela árvore, fiel amiga, e a quem confidenciei tantos segredos e sonhos infantis.

Anos mais tarde, já na minha adolescência, foi publicado o livro “O Meu Pé de Laranja Lima”, no qual José Mauro de Vasconcelos, autor, relatava fatos parecidos, e pude compreender mais que qualquer outro leitor a dor do pequeno Zezé, personagem central da história.

Hoje, já sexagenário, e quase cinco décadas do lançamento da primeira edição, asseguro que minha dor é muito maior que a dele. Criança supera as perdas muito rapidamente, enquanto nós, adultos, temos tendência a sofrer por muito mais tempo.

Perdi muito mais que meu pé de pitanga, o quintal das brincadeiras ou o ponto de encontro familiar. Décadas de lembranças gostosas da vida desapareceram, jazem sepultadas, resta apenas o meu vazio interior, nada mais. O terreno está disponibilizado para locação; quem sabe em breve teremos um estacionamento, um posto de combustíveis ou um supermercado, mostrando a pujança comercial de um bairro antigo que agora se moderniza, acompanhando o ritmo de desenvolvimento acelerado da cidade, com suas novas construções e avenidas, mas ainda conservando seus antigos problemas sociais. E, também, alguns recentes como a falta de registros históricos e a preservação de seus prédios seculares.

Saio dali caminhando em sentido à velha ponte, que faz a divisa do bairro com o centro da cidade. Assim como fazia nos tempos antigos, faço uma parada para observar as águas do rio histórico que cruza o município, e desço até uma de suas margens para tocar aquele líquido volumoso que irá desaguar no distante oceano.

Assusto-me ao ver meu rosto refletido nele, A imagem é a do meu rosto de menino, não posso estar ficando louco. Fecho os olhos por alguns segundos e torno a abri-los para novamente me observar naquele espelho.

Só então percebo que, na verdade, viajei por curto espaço no tempo. Vejo a minha imagem de hoje, mas sob minha cabeça está refletida também a sombra de uma pequena árvore poucos metros acima da cabeceira, uma pitangueira muito parecida com a da minha infância, mais parecendo moldura de uma velha janela.

Sim, uma fenestra muito igual a da antiga casa que foi derrubada. E sorrio pela viagem saudosa pela janela do tempo, por mais doída que ela tenha sido.