A PROMESSA
Baseada num relato da artista - plástica Eunice Coppi
Uma passagem de menina
que nunca mais esqueci
foi da menina Severina,
do seu jeito diferente
de rezar e pedir a Deus,
ou talvez agradecer,
uma interferência divina.
Isso faz tanto tempo
Foi na minha cidade,
Sabará, terra mineira,
numa igreja de nome cumprido
“Santo Antônio da Roça Grande”,
às margens do Rio das Velhas,
local de intensa peregrinação
fundada por um bandeirante
na corrida pelo ouro nas Gerais.
Erigiram capelinha singela
dedicada à devoção
de Santo Antônio de Pádua.
Esse santo milagreiro
é afamado na região
para lá convergem romeiros:
súplicas, fé, esperança,
lágrimas, orações, gratidão,
misticismo, milagres do além...
Severina ajoelhava-se
não fechava os olhos,
olhava para o alto,
empinava o peito,
murmurava em voz baixa,
não usava as mãos-postas,
deixava os braços caídos,
o posicionamento corporal,
tão diferente e autêntico,
chamava a minha atenção.
A Severina era criança,
“Deus escuta as preces infantis”,
dizia minha avó Conceição,
de todas as pessoas que eu vi ali
a Severina é a que rezava mais
fervorosamente, concentrada.
Sensação incrível e inspiradora!
Passado algum tempo,
alcançado o seu pedido,
Severina cumpriu sua PROMESSA.
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Você sabe perceber a Poesia?
Poema inspirado na fotografia de Nana Tavares
Uma flor amarela-canela
caída em uma mureta
à beira-mar-espelho-do-céu,
desligada da sua criadora
a exalar os últimos suspiros
continua bela a amarela-canela
por algumas horas se conservará
para ainda chamar a sua atenção.
Assim nasce o despertar de um encanto:
enquanto existir vida, há Poesia,
enquanto existir memória, há Poesia,
enquanto houver esperança, há Poesia!
A Poesia é a mão que salva
do mais profundo abismo.
É uma flor amarela-canela
Que aparece pelo caminho.
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Conto extraído do livro “Abandonados na Roda: destinos” – vol. 2 (Matarazzo, 2019), de Thais Matarazzo.
FILHA DO VENTO
Ela gostava de escrever os seus poemas quando a noite era de luar, tanto faz se no frio ou no calor.
A lua era presença obrigatória para a sua produção, sendo a sua parceira.
Cecília era uma das órfãs que vivia no Asilo dos Expostos, instalado numa ampla chácara Wanderley, no bairro do Pacaembu, em São Paulo. O dormitório feminino era coletivo e ficava no lado direito do velho casarão. Nele dormiam crianças e adolescentes de todas as idades. Cada utente possuía uma cama de ferro e um criado mudo, que incluía uma gavetinha, era ali que Cecília guardava os seus poemas, em papéis soltos ou em pequenos cadernos.
Durante o dia, Cecília e suas colegas estudavam e aprendiam trabalhos domésticos e manuais. Quase todo o serviço de limpeza era executado pelos internos. Cecília também tinha que auxiliar nos cuidados com as crianças pequenas, trabalho que não apreciava muito.
A jovem era sonhadora e tinha um espírito livre. Era rebelde e inteligente, aprendeu a não contrariar e nem responder para não “bater de frente” com as religiosas que administravam o asilo. Mas nunca concordou com às regras e à catequese das freiras, achava que o mundo era muito mais interessante do que o ambiente do orfanato, que considerava mais “um convento”.
Certo dia, quando já estava com 17 anos, tomou coragem e foi conversar com o diretor. Solicitou informações sobre o seu registro no Livro de Matrícula dos Expostos, desejava saber algo sobre à sua origem. O pedido foi deferido, o diretor informou que ela foi deitada na Roda dos Expostos em 8 de outubro de 1883, quando as instalações da Santa Casa ainda eram na Rua da Glória, na Liberdade. Cecília foi deixada com um papel, com a declaração de que ela “seria procurada ao seu tempo”. O batismo aconteceu dois dias depois, na matriz da Sé, tendo como celebrante o padre Manuel de Abreu, a menina recebeu o nome da madrinha, Cecília Leitão, e o padrinho foi Santo Antônio.
- É somente o que consta, minha garota.
- Ser procurada ao seu tempo... Há quanto tempo? Já tenho 17 anos e “esse tempo” nunca chegou, não é mesmo, senhor diretor?
Mesmo sentindo um nó na garganta, o sisudo senhor replicou.
- Está satisfeita com as informações, Cecília?
A garota o olhou fixamente, de maneira séria. Ela agradeceu e retirou-se da sala da diretoria. Cecília sentiu “o grande vazio do mundo”. Correu para o dormitório feminino e chorou... ali sozinha, na “solidão que sempre a acompanhava”.
Sabia que estava próximo o momento em que teria que deixar o asilo. Naquele mesmo dia, ao final da tarde, correu para um local afastado dentro da chácara, sentou-se debaixo do pé de manacá - que estava esplendidamente florido - localizado no cimo do monte de onde se avistava a Serra da Cantareira...
Angustiada em seus sentimentos, desejando traduzir aquilo que se passava em seu coração, mente e alma, indagava-se sobre a sua solidão, sobre a falta de referências sobre as suas raízes... Quem seria a sua mãe? Qual seria o seu nome?
Com lágrimas nos olhos, não esperou pela lua, e proferiu esses versos:
Escrevi teu nome no vento
E ele levou minhas palavras
Evaporou na nuvem do esquecimento
Ah, o vento sem sentimento...
Não sei de onde vim
Nem sei para onde vou...
Daqui a pouco ganharei o mundo
Não sei se ele é raso ou profundo
Como ele irá me devorar?
Serei livre para sempre
Sem âncoras para aportar
Sou uma filha do vento
Irei para onde ele me soprar...
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