OBSERVAÇÕES E APRENDIZADOS DA EPIDEMIA

Regina Célia Pinheiro da Silva

 

Depois de quase cinco meses isolada em casa, saindo só quando extremamente necessário, me vi impelida a registrar algumas ideias, sensações e aprendizados, já que não sabemos até onde essa coisa vai.

A primeira constatação é o aumento do meu trabalho doméstico. Como a ajudante não está vindo, por minha própria orientação, estou tendo que “trabalhar dobrado”, ou melhor, o triplo. Com os meus problemas de coluna, chego ao fim do dia desmontando, pouco animada para ler e, sem muita condição para escrever. O reconfortante, se é que isso é possível, é constatar que isso está acontecendo com muitas amigas.

Como meu marido também está em casa, estamos tendo que dividir espaço, e o pior, o computador. Antes, ele ia, quinzenalmente, a São Paulo e trabalhava lá no domingo e na segunda-feira, além das tardes no consultório aqui em nossa cidade. Nessas ocasiões, o tempo era meu e me ocupava em digitar minhas poesias, escrever meus textos, enfim, fazer o que me dava prazer. Virgínia Wolf em seu livro Um teto todo seu, escreve sobre a condição da mulher escritora. Identifiquei-me com a leitura e, agora, com a quarentena, constatei melhor ainda a veracidade das suas palavras. É muito mais difícil para a mulher dedicar-se à literatura do que para o homem, considerando-se as diversas atividades que lhe são atribuídas socialmente. E veja: diferente dos exemplos de sua época, dados por ela em seu livro, meus filhos já são crescidos, não estão na fase de dependência e cuidados em que eu tinha que me dividir entre eles e a casa, além do trabalho em uma instituição de saúde e em outra, como docente universitária, somado ao que, “de quebra”, ainda trazia para casa depois do expediente.

Outra reflexão, que teço, tem a ver com a inconsequência dos jovens, que, por se julgarem eternos e imunes ao vírus, não temem as aglomerações, não se protegem adequadamente e, mais ainda, se arriscam sem pensar em si nem nos outros. Com mais de 90 mil mortes pela Covid, parece, para eles, que não está acontecendo nada. Imaturidade? Mas como reconstruir o mundo pós-pandemia com essa imaturidade?  Há muito que ver o outro não é estimulado em nossa sociedade consumista, em que cada um pensa quase sempre apenas em si, e em seus ganhos de todas as espécies: monetário, de poder,do seu próprio sucesso etc. A vida na sociedade atual e dita “civilizada” se apresenta cada vez mais fragmentada, injusta, restrita a pequenos grupos, em todos os sentidos,privilegiados. Não há uma visão de totalidade, de comunidade, de proteção do meio ambiente, um reconhecimento da importância de cada ser existente no planeta.

Na minha família, há uma raiz indígena. Meu pai e meu avô contavam que o bisavô do meu pai, vivia na região da divisa entre Espírito Santo e Minas Gerais, e foi “índio caçado à laço”. Acreditamos que era uma força de expressão usada naquela época, mas a realidade é que era um índio, que foi trazido depois que a aldeia foi desfeita (não sabemos em que circunstâncias). Assim, tenho uma ligação forte com a natureza, um pezinho na mata. O grande indígena Ailton Krenak, em seu livro O amanhã não está à venda, afirma “Esse vírus está discriminando a humanidade. (...) O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos.” E, mais à frente: “O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante.” O que estamos fazendo ao desconsiderar o meio ambiente, a natureza e os outros seres?

Por outro lado, me chama atenção o fato de nos diversos países atingidos pela epidemia, ser bem pequeno o número de crianças que adquirem o vírus. O que lhes dá essa maior proteção? Ninguém sabe ainda, mas teço algumas considerações. Crianças são ingênuas, crédulas, com uma essência de verdade e pureza intrínsecas. Crianças sempre foram vistas como esperança de um mundo melhor e parece que, nessa epidemia, estão sendo protegidas. Como sementes para um novo construir. Seremos capazes de cultivar de maneira diferente essas sementes do amanhã, sem transmitir-lhes o tanto de capacidade de dano e destruição que acumulamos e realizamos ao longo de séculos em todos os cantos do planeta?

Somos muitos e diversos. Cada país, cada cultura, tem valores próprios que vão sendo transmitidos de forma condicionada e repetitiva ao longo das gerações. Há países em que os idosos são ouvidos e respeitados em sua sabedoria. Têm histórias que, acumuladas ao longo da vida em várias vivências, muitas vezes dolorosas, são compartilhadas e valorizadas como aprendizado, o que pode ser observado, especialmente, em culturas orientais. Na atualidade, na maior parte do planeta, os idosos não são muito considerados. O jovem pensa primeiro nele, em alcançar seus próprios objetivos o que, por um lado, é natural no processo de crescimento e na necessidade de sobrevivência. Por outro lado, há aí uma desconsideração na forma como sobrevivem os idosos que continuam a contribuir com seu trabalho, seja monetariamente ou cuidando de familiares como netos, pessoas mais idosas ou acamadas. A invisibilidade e a não escuta dos mais idosos é uma realidade presente em grande parte da sociedade ocidental.

Gosto muito de um bordão de uma novela da televisão: “Tudo o que acontece de ruim na vida da gente, é para melhorar!”. Aí coloco minha esperança após essa epidemia. Que os jovens não pensem apenas em si, mas na coletividade; que nossas crianças sejam levadas a uma formação com valores mais solidários ao outro e à preservação do planeta como um todo; que os idosos sejam ouvidos e não apenas escutados; vistos e, não apenas olhados e que, por tudo que fizeram para que cada um de nós existisse, sejam acolhidos em sua plena alteridade.