Ano de 1908. Na Europa, a Bulgária proclamava-se independente do Império Otomano, enquanto o Império Austro-Húngaro anexava a Bósnia e a Herzegovina. Em 1º de fevereiro, o rei Carlos I de Portugal e o seu filho mais velho, Luís Filipe (o Duque de Bragança), foram assassinados no Terreiro do Paço, em Lisboa, por membros da Carbonária, uma sociedade secreta republicana. Entre nós, morria Machado de Assis. Nas primícias do século XX, o mundo conhece incertezas e turbulências.
Mas nem tudo foram tragédias. O matemático francês Henri Poincaré escrevia “Ciência e Método”, obra de divulgação científica que gozaria de enorme sucesso junto às gerações pósteras, por desvelar as esfinges da Ciência e aproximar o comum do povo das luminosas colunas do conhecimento científico. Na Alemanha e na Inglaterra, de modo independente, demonstrou-se o princípio de Hardy-Weinberg, base fundamental para o estudo da genética de populações. Ainda na França, nasceu Simone de Beauvoir, expoente da filosofia e da literatura europeia; e, nas veredas políticas, 1908 legou-nos Olga Benário e Lyndon Johnson, entre outros. No Brasil, em cinco de dezembro, nasceu a Cruz Vermelha brasileira; e iniciou-se a imigração japonesa no Brasil, com a chegada do navio “Kasato Maru” no Porto de Santos, em 18 de junho. Nasceu também Adolpho Bloch, emérito fundador da Rede Manchete de Rádio e Televisão. E, no Rio de Janeiro, nasceu Angenor de Oliveira, o popular “Cartola”, compositor e violonista que inspiraria o samba e o carnaval brasileiro durante todo o século XX.
Aqui tem início a minha oração. Oração para exaltar, como também para admirar e perlustrar. Traçar linhas de coincidências. E fazer pensar se de fato há coincidências. Ou se há destino.
No mesmo Rio de Janeiro, quando ainda Distrito Federal, nasceu, em 02 de maio de 1908, filho de José Balbi e de D.ª Maria Antonieta Balbi, aquele que por honra assumi qual patrono: Alfredo José Balbi. Este mesmo que seria, um século depois, o Patriarca da Universidade de Taubaté. E o Patrono da Cadeira n. 18 da Academia Taubateana de Letras.
Seu pai, natural de Rocca, na província italiana de Salermo, conheceu os fulgores da Europa inquieta do entresséculo. Inquietude própria da modernidade liberal que se liquefez durante o século XX e anunciou a pós-modernidade milenarista que agora começamos a experenciar. E trouxe consigo esta inquietude, transmitindo-a decerto à prole. Sua mãe, natural do Rio de Janeiro, deu-lhe a vida. Nada mais é preciso ser dito.
Ainda no Rio de Janeiro, Balbi concluiu sua formação de homem de letras e de leis: curso primário, secundário e superior em Direito. Formou-se bacharel na Faculdade de Direito da Universidade Nacional do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduou-se em 8 de dezembro de 1933. Pertence, na origem, à mesma e excelente cepa de juristas como foram Joaquim Pimenta, na cátedra de Sociologia e de Direito do Trabalho; ou ainda, na turma de 1937 (quatro anos depois), pensadores da cepa de José Honório Rodrigues, ensaísta e importante historiador brasileiro, e Evaristo de Moraes Filho, catedrático em Direito do Trabalho e Sociologia, até hoje dos autores mais cultuados entre os juslaboralistas pátrios. Da nova geração, a partir dos anos quarenta, citem-se ainda San Tiago Dantas, no Direito Político, e Hélio Tornaghi, no Direito Processual Penal. Balbi especializar-se-ia em Direito Falimentar, ainda sob a égide do revogado Decreto-lei 7.661/45.
Após a formatura, Balbi radicou-se no Estado de São Paulo, a partir do ano de 1934. Encontrando-se aqui com colega da Faculdade Nacional, foi por ele convidado a assumir as funções de advogado na Prefeitura do Município de São José dos Campos, o que guinou os rumos do recém-formado bacharel, que tinha planos para a capital. Na capital do Vale do Paraíba, por cinco anos, Balbi exerceu com dedicação e competência a advocacia pública, na salvaguarda dos interesses da Administração Pública joseense.
Também ali, em São José dos Campos, vieram a público os primeiros laivos de sua visão progressista de mundo e do seu natural destemor, ingressando na vida política em tempos decerto confusos, quando o Brasil conhecia o “Governo Constitucional” e logo depois a ditadura de Getúlio Vargas (sob o nome de “Estado Novo”). Balbi militou no Partido Republicano Paulista (PRP), opositor de Vargas, que havia dado forma e substância ao primeiro movimento republicano brasileiro, ainda em 1873, na Convenção de Itu, e dominou a política paulista durante toda a República Velha. Neste partido também militaram, entre outros (e em diversas épocas), Américo Brasiliense, Luís Gama, Bernardino de Campos, Prudente de Moraes, Campos Sales, Francisco Glicério, Júlio Mesquita, Elói Chaves, Ataliba Leonel, Menotti del Picchia e Jorge Tibiriçá Piratininga, todos vultos solenes da nossa História. E, entre tantos, José Balbi, “perrepista” da resistência, nas hostes do partido até 1937, quando foi extinto por Getúlio Vargas, com a edição do Decreto-lei n. 37, de 02.12.1937.
Assentou finalmente domicílio na cidade de Taubaté no ano de 1938. Isso porque em Taubaté havia sido nomeado Inspetor de Ensino Secundário junto ao Colégio Diocesano Santo Antonio, mister que desempenhava desde 15 de outubro de 1934. Em Taubaté, dedicou-se intensamente aos seus dois grandes amores vocacionais: o ensino e o direito. Realizou, com efeito, valiosos trabalhos no campo educacional e na atividade advocatícia.
Passados os horrores da Segunda Guerra Mundial e todo o tempo de recessão que o conflito impôs ao mundo, retomou-se no Brasil a vida normal e os seus assuntos institucionais. Em junho de 1954, Balbi foi nomeado Inspetor Seccional do Ensino Secundário, com sede em Taubaté e jurisdição sobre todo o Vale do Paraíba, função delegada que exerceria por catorze anos, após sucessivas reconduções, até o mês de agosto de 1968, quando alfim se aposentou no serviço público estadual. Nesses derradeiros anos, falou mais forte o seu segundo amor vocacional: o ensino público.
Partiu de seu engenho, como também do engenho visionário do amigo Sebastião Monteiro Bonato, ilustre advogado e cidadão caçapavense, a ideia de um complexo universitário na cidade de Taubaté. No ano de 1956, quando era Prefeito do Município de Taubaté o Dr. Juarés Guisard, ambos idealizaram e fundaram a Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Taubaté, a Faculdade de Ciências Contábeis e Atuariais de Taubaté (hoje Faculdade de Ciências Econômicas, Administrativas, Contábeis e Secretariado Executivo), a Escola de Engenharia de Taubaté e a gloriosa Faculdade de Direito de Taubaté, em cujas salas tive a honra de lecionar, durante dez anos, na qualidade de professor das cadeiras de Direito Penal. Essas todas integrariam depois, ao lado da Faculdade de Serviço Social e da Faculdade de Medicina, a jóia maior do ensino superior vale-paraibano: a Universidade de Taubaté, recentemente considerada a principal instituição universitária da região.
Da tríade essencial fez ainda parte, naqueles anos, o Professor Doutor José Alves, que compunha, ao lado de Balbi e Bonato, a Diretoria da então Sociedade Civil de Ensino de Taubaté. Eis de novo as coincidências: eu, acadêmico da ATL, ao acaso titular da Cadeira n. 18, sou também devedor ― direto e indireto ― da grande legado institucional que Balbi, Bonato e Alves deixaram à posteridade taubateana. Haveria mesmo de exaltá-los, senão pela Academia, certamente pela docência universitária: foi no Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade de Taubaté, no ano de 2000, onde me iniciei prestamista do ensino superior, primeiramente a convite do meu estimado amigo Professor José Nery de Gouvea, então Chefe de Departamento, como professor-colaborador, e alguns anos depois, já por concurso público de provas e títulos, como professor-assistente doutor. Na UNITAU, e não na USP, descobri ― se tenho uma ― a vocação para docência. O que devo tributar especialmente a duas pessoas: a José Nery de Gouvea, diretamente; e a Alfredo José Balbi, indiretamente.
Balbi foi Diretor da Faculdade de Direito de Taubaté durante seis anos consecutivos, que então funcionava onde hoje está instalado o Departamento de Educação, Ciências Sociais e de Letras e a Escola de Primeiro e Segundo Graus que meritoriamente hoje empresta o seu nome, “Alfredo José Balbi”. Também lecionou, por longos anos, na cadeira de Direito Falimentar. Nesse espaço, ademais, construiu três magníficos salões, antevendo a expansão que a Faculdade de Direito conheceria nos anos vindouros. De fato, veio a expansão; e o antigo prédio já não mais comportava o vultoso corpo discente. Balbi e Bonato destinaram então os parcos recursos da Faculdade de Direito à construção da obra que hoje é referência arquitetônica no Parque Dr. Barbosa de Oliveira, no centro de Taubaté, abrigando o atual Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade de Taubaté, onde funcionam os cursos de graduação em Direito (noturna e diurna) e também o de pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho, coordenado por este acadêmico.
Em 1973, nascia este acadêmico. E no ano seguinte, em 1974, ainda no início do ano letivo, Balbi afastava-se definitivamente da cadeira de Direito Falimentar, em virtude de enfarto do miocárdio de que padecera na cidade do Rio de Janeiro, onde então se encontrava em visita à mãe enferma. Mas seu magistério prosseguiu, nos bastidores e nas entrelinhas: prestou orientação e emprestou experiência a inúmeros docentes da Faculdade de Direito, estimulou os seus estudantes nas lidas universitárias e na pesquisa científica e participou da concepção fundamental das diretrizes da Universidade de Taubaté.
Por fim, pleno de realizações e objeto do mais robusto e unânime reconhecimento comunitário, deixou o plano físico em 22 de maio de 1978, deixando àquele tempo sua esposa, D.ª Dora, seus dois filhos, José Alfredo e Maria Cristina, e dois netos, Rodrigo e Daniel. Maria Cristina seguiu de perto os amores do pai, pertencendo ainda hoje aos quadros executivos da UNITAU, no Instituto de Exatas (Departamento de Informática). Ano de grandes perdas: foram-se Paulo VI, o mais progressista dos papas do século XX, e João Paulo I; Giovanni Gronchi, ex-presidente da Itália, de onde imigrara a família Balbi; na música, foram-se Orlando Silva, o “cantor das multidões”, e o folclórico baterista Keith Moon, da banda britânica The Who. Para nós, taubateanos, foi-se José Balbi.
Não conheci Alfredo José Balbi. Ou melhor, não o conheci pessoalmente. Mas ouso dizer que o conheci objetivamente: pela sua obra, pela sua história, pelo seu valor. Desde os tempos da Faculdade de Direito da Universidade Nacional, esteve entre os grandes; mas preferiu não brilhar como eles. Como os profetas menores do Antigo Testamento, optou por fazer a obra, ao invés de simplesmente decantá-la. E a fez, no campo das ideias e no campo da “práxis”. Ora com o necessário concreto, para os prédios e saguões; e ora com a mais perene das argamassas, a do livre pensamento. Levou à sua comunidade, e a outras tantas ― porque a UNITAU é hoje um pólo universitário nacional ―, o ensino, a cultura e a ciência. Como ― permitam-me um paralelo ― teria feito, para as coisas de Jahveh, o profeta Amós (nome que justamente significa, na língua hebraica, o verbo “levar”).
Amós foi vaqueiro e cultivador de sicômoros, um fruto comestível cujas frutas devem ser arranhadas com a unha antes de amadurecerem para que fiquem doces (Livro de Amós, 7:14). Como são, segundo penso, os estudantes (em especial os universitários): há que provocá-los, prová-los, “arranhá-los”, para movê-los de seu espaço de conforto e instigá-los à pesquisa, ao estudo e à produção científica. Balbi assim fez, especialmente após 1974. Amós viveu em tempos nos quais o luxo dos ricos insultava a miséria dos oprimidos e o esplendor do culto religioso disfarçava a ausência de uma religião verdadeira. Corajoso, o profeta denunciou a todos a condição de opressão e injustiça que se impunha ao povo. Como fizeram os “perrepistas”, contra a ditadura varguista, antes da extinção do partido. Como entre nós fez, nas lidas da política, do ensino e do direito, Alfredo José Balbi. Sem histrionismos ou afetações. Na exata medida do razoável.
Não conheci Alfredo José Balbi. Mas, como ele, amei o bom Direito e o Ensino Universitário. Como ele, amei a UNITAU. E, talvez por isso, aprendi a admirá-lo. Esta admiração, busquei vertê-la em versos. Com o que encerro, para seguir em vida exaltando.
Balbi
Homens existem os bons,
Os maus e os irrelevantes.
Os que passam, em meio-tom,
E os que se fazem em tons gritantes.
Há, porém, aqueles mais raros,
Que não passam, persistem, jamais se vão,
Porque simplesmente são.
Refletem o indizível
Na grandeza da discrição.
A este o temor não cala,
E ecoa forte a serena fala.
São dele a mirada ousada
E os augúrios da antevisão.
É o que, na procissão dos tempos,
Transcende em boa razão.
Desses patriarcas imorredouros,
Houve um grande entre nós.
Legou-nos a educação,
De tudo a fecunda foz.
Legou-nos o seu exemplo
E nele o valor de Amós.
Perfez-se, de salve em salve,
Alfredo, o José Balbi.